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Do necessário plebiscito chileno a ingratidão constitucional no Brasil

 No último domingo de outubro (25), milhares de chilenos foram às urnas votar pelo plebiscito que decidiu que o Chile deve convocar uma assembleia nacional constituinte e elaborar uma nova constituição para o país. 

 Após os protestos do final de 2019, a população do Chile enfim, tem concedida por decisão soberana popular em optar por ter uma nova constituição, livre dos entulhos autoritários impostos pela carta constitucional em vigor, elaborada pelo general Pinochet, o qual governou o país, numa das ditaduras mais sangrentas da América Latina.

 As constituições nacionais surgiram após revoluções populares exigirem que as monarquias as adotassem, para que a vontade do povo, manifestada institucionalmente por meio de uma assembleia de representantes eleitos, fosse acolhida.

 Esse entendimento partiu das reflexões de dois pensadores iluministas, o Barão de Montesquieu - que defendeu a divisão tripartite dos poderes de Estado - e o filósofo Jean-Jacques Rousseau, o qual elaborou a ideia de um contrato social firmado entre o povo e seus governantes.

 Foi justamente pelo fato de os governantes serem monarcas e já estarem exercendo o poder, por uma legitimidade fiduciária (não lastreada pelo sufrágio do voto popular), onde as primeiras democracias ocidentais modernas surgidas, optaram pela escolha indireta de um governo o qual dividisse as funções de Estado com o rei, que por sua vez o seria feito por meio de representantes - estes sim, eleitos diretamente pelo povo. 

 Dentro dessa abordagem democrática na qual a vontade popular chilena prevaleceu e onde na qual teve origem nos protestos ocorridos no país há aproximadamente 1 ano atrás, evoca-se a natureza de tais manifestações ao redor do que se distingue quando a população brasileira também vai às ruas.

Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia 
Nacional Constituinte de 1987/1988, ergue exemplar 
da Constituição Federal, durante solenidade de sua 
promulgação em 5 de outubro de 1988 
(foto: Arquivo Nacional).

 Por isso enquanto no Chile, o povo buscou reivindicar uma pauta, uma proposta e um novo projeto democrático para seu país (em função da perda de direitos), no Brasil, as pessoas se manifestam geralmente para declarar apoio a um governo ou endossar sua oposição a outros que lhes são antipáticos e os quais também por razões ideológicas, considera nocivos a seus interesses particulares. 

 Com isso, as manifestações brasileiras se dão mais ao redor de figuras, rostos e personalidades políticas, do que propriamente sobre algo que gire ao redor de uma agenda nacional, onde o bem estar público seja a prioridade (e não apenas, os interesses corporativos privados). 

 Nesse sentido, quem acaba fazendo tal pressão por essa agenda para o Brasil (porém atendendo unicamente a seus próprios interesses), são empresários e agentes do setor financeiro; o que termina neutralizando a democracia em nosso País, pois geralmente os interesses da elite dominante, se chocam com os interesses populares.

 Muitos afirmam que o Brasil precisaria de uma nova Constituição ou que a atual, no mínimo necessitaria de reformas, pois teria "excessos de direitos" - e que esses direitos não cabem no orçamento do governo; exatamente a razão oposta que levou os chilenos a protestarem, pois entendem que a constituição deles, não garante direito algum ao povo. 

 Portanto, o que se argumenta ao redor de um suposto excesso de direitos na Constituição brasileira, reflete tentativas sofismadas de distorcer o debate, no qual a defesa de uma nova Carta Constitucional, expõe a dissolução de direitos previstos, porém, não propriamente garantidos na Constituição Federal de 1988.

 Mesmo aquilo que se entende como "cláusulas pétreas", tais como direitos os quais são inegociáveis ou não podem ser suprimidos sob nenhuma hipótese, tiveram parte de suas eficácias institucionais postas em questionamento; como exemplo podemos citar a reforma trabalhista que em alguns casos, prevê até a redução de salários, mas a Constituição determina que ninguém pode receber menos que um salário mínimo.

 Outro aspecto recente que acaba fazendo a Constituição brasileira entrar em contradição contra ela mesma, é a Emenda 95, à qual restringe gastos em áreas sociais, onde a Constituição diz que é obrigação do Estado Nacional, prestar seu devido atendimento.

 Assim sendo, a mesma Carta Magna que exige do Estado Nacional Brasileiro, atendimento em áreas como saúde, educação, segurança pública e infraestrutura, contém um novo dispositivo no qual limita e estabelece um nível máximo de gastos, com base nos índices de inflação do ano anterior, devidamente apreciados na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), aprovada todos os anos por deputados e senadores, e determina quanto o governo gastará em cada uma dessas áreas.

 O mais irônico de afirmações como a do líder do governo na Câmara dos Deputados e ex-ministro da Saúde, Ricardo Barros (Progressistas-PR), é que elas partem justamente daqueles os quais assim como ele, são privilegiados pelo Estado, e enxergam nas garantias constitucionais para as massas, como "excesso de direitos". Infelizmente, o que a Constituição não foi capaz ainda de definir com clareza, é a distinção entre direitos e privilégios.

 Conceitualmente, direitos podem ser definidos como um conjunto de normas que garantem o mínimo de dignidade humana em que visa a correção de distorções naturais nas relações sociais, ocasionadas pelas disparidades de convivência entre as pessoas de grupos distintos e portanto, em melhor situação, destinada a atender uma ampla maioria populacional de massa vista em desvantagem no que tange a suas condições de vida.

 Já privilégios, são concedidos a uma pequena parcela de pessoas às quais se encontram em melhores situações de vida, muito acima do restante da população; enquanto os direitos basicamente são garantidos pelos Estados Nacionais através de suas constituições, os privilégios nem sempre são igualmente validados apenas pelo ente estatal. 

 Os privilégios também podem ser salvaguardados por critérios de nascimento, origem familiar ou poder aquisitivo, mas quase sempre, também podem estar associados a algum tipo de favor prestado pelo Estado. Foi nessa concepção ao redor dos privilégios que as revoluções iluministas no Século 18, deram respaldo para o surgimento das democracias liberais da atualidade.

 De modo controverso, o ex-ministro Ricardo Barros, defende uma nova constituição para revogar uma boa parcela de direitos previstos na Carta Constitucional brasileira atual e que no início deste mês, completou 32 anos de vigência (o mais longo período de normalidade constitucional da história republicana), mas também não menciona nada sobre os privilégios, principalmente de aposentadorias especiais destinadas a procuradores, magistrados, militares e a políticos como ele.

 Outro aspecto visto como privilégio, é ocasionado por distorções em nosso modelo de arrecadação tributária, caracterizando uma realidade onde quem ganha menos paga mais impostos e quem ganha mais, paga menos; além de outros os quais ainda possuem isenção de alguns tributos, alegados na condição de que se tratam de setores considerados estratégicos para a economia do País e que por isso, seria visto como medidas de estímulo econômico.

Ministro Paulo Guedes (Economia), já elogiou o modelo chileno de Estado mínimo por diversas oportunidades; banqueiro, Guedes vitimizou empresários brasileiros com a seguinte frase: “O empresário brasileiro tem uma bola de ferro na perna direita (juros altos), outra, na perna esquerda (impostos), e um piano nas costas (encargos sociais e trabalhistas)”; o que Guedes, se recusa a reconhecer é que essa conta supostamente paga pelo empresariado, é repassada para a população em forma de salários reduzidos, sonegação de impostos e aumentos instantâneos e injustificados de preços, com o consumidor obrigado a compartilhar custos até sobre o uso da maquininha do cartão de crédito.

 No entanto, essas renúncias fiscais hoje na ordem de R$ 370 bilhões não estão surtindo nenhum efeito benéfico sobre o crescimento da economia, muito menos na geração de empregos (de qualidade, bem remunerados e estáveis). O que mais uma vez, caracteriza privilégio para aqueles que poderiam contribuir mais, mas são imunes de impostos.

 Declarações como as de Barros, refletem o quanto a elite brasileira tomou conta do discurso democrático, onde a população se permite terceiriza-lo. Tal condição ocorre porque como nossas elites se apropriaram da legitimidade do monopólio discursivo, termina por desqualificar qualquer proposta em contrário, incluindo o uso de meios que até criminalizam aqueles que insistam em se opor à retórica oficiosa.

 Portanto, como a população teme ser vista como criminosa, prefere terceirizar esse discurso a uma imprensa supostamente livre, mas que em boa parcela, está amarrada a uma agenda financeira que também prega a revogação gradual de direitos, na alegação de que o orçamento brasileiro o qual atende aos mais necessitados, não cabe na Constituição Federal.

 O resultado é que temos uma democracia meia-boca e que à cada reforma aprovada, vem sendo cada vez mais ameaçada; reformas nas quais direitos são suprimidos e privilégios seguem intocados (ainda que em desconformidade com o entendimento constitucional).

 No caso brasileiro, não precisamos de outra constituição, precisamos sim, é de um povo com uma nova mentalidade política. Algo que temos de aprender com os chilenos, os quais diga-se de passagem, estão de parabéns!

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