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A Síria em cada um de nós

 "Ninguém vai bater mais forte que a vida. Não importa como você bate e sim o quanto aguenta apanhar e continuar lutando; o quanto pode suportar e seguir em frente. É assim que se ganha." Não há frase melhor que sintetize o que isso significa para o povo sírio, palestino, haitiano, africano, venezuelano ou (nortista e nordestino) brasileiro, proferida no filme Rocky Balboa de 2006, em que o personagem de Sylvester Stallone, procura demonstrar ao filho que na linha de pensamento de uma luta, o forte é aquele que verdadeiramente sabe suportar as pancadas da vida. 

 Assim sendo, a "vida" (sistema social), bate, e sabe bater forte, o importante porém, é demonstrar que se pode seguir resistindo e aguentando tudo, seja no silêncio do sofrimento de uma mulher pobre que não sabe de onde tirar comida para os filhos ou no 'grito dos excluídos' ecoado em protesto das ruas. Resistir e aguentar parecem ser os verdadeiros e reais sinônimos de fortaleza, robustez e firmeza. 

 Dor e sofrimento, os quais o capitalismo impõe a levas inteiras de pessoas pelo mundo, deverá um dia cessar, porém o que parece estar longe disso se dá na menor menção possível de fraqueza dos oprimidos que demonstram sua força em meio ao sofrimento contínuo por que passam. A situação na Síria, no Haiti, nos países africanos, na Palestina, na Venezuela ou de brasileiros do Norte e Nordeste do país ('eternos' fugitivos da miséria abrangente da parte pobre do Brasil), enfatiza o vigor que os pobres possuem de seguirem suas vidas demonstrando força, ao simplesmente resistirem. 

 Como bem expressa o filósofo das ruas, Eduardo Marinho, em um de seus célebres pronunciamentos, exposto em um de seus vídeos 'viralizados' que circulam pela internet - quando nos diz que o pobre é quem verdadeiramente sustenta o sistema por ser base de tudo -, nos expõe a face mais cruel que o sofisma imposto pelo pensamento dominante pode nos induz a aceitar, como conceito raso do senso comum, de que os ricos é que em tese, seriam generosos por concederem oportunidade aos pobres de servi-los: 

 "Se você prestar atenção na sociedade, é a 'parte de baixo' que faz tudo: quem é que planta tudo que se come? É a mão pobre. Quem é que costura todas as roupas que se veste (de marca ou não)? Mão pobre. Quem é que bota a calçada; quem é que bota os tijolos um em cima do outro; quem permite que a universidade funcione? É tudo pobre. Quem recolhe o lixo; quem cata os feridos e leva pro hospital; quem recebe no hospital? Tudo pobre!"

 Essa constatação possui a beleza libertadora de uma singularidade, só comparada às mensagens de Cristo gravadas nos Evangelhos, que exalta a força dos humildes, não por aquilo que se entende como atos de violência da parte deles (visto como objeto de criminalização dos pobres em face ao discurso da criminalidade), mas sim, por suas capacidades de suportar as dificuldades da vida. É muito mais forte aquele que tudo suporta, do que aquele que impõe sofrimento, pois quem impõe o sofrimento é fraco e pior: é o mais vil dos covardes; porque terceiriza aquilo que serviria para torna-lo um ser humano mais forte, àquele que considera inferior e em tese "mais fraco".


Sartre: "Quando os ricos fazem a guerra, são sempre os pobres
 que morrem."

 Quem é mais forte afinal? Os Estados Unidos como nação bélica mais poderosa do mundo; o Estado Islâmico na condição de perpetuador do caos, o governo de Bashar al-Assad ou povo sírio? Mesmo que tenha buscado refúgio em outros países, o povo sírio é o mais forte, por reconhecer sua miséria e partir para outras paragens que lhe permita um pouco de paz e aprazibilidade. Nesse entendimento ainda, se inicia uma compreensão do que verdadeiramente representa o sofrimento para um religioso resignado, também na concepção muçulmana síria? 

 Quando temos São Paulo em seus últimos dias de vida (e de cárcere), no relato da carta escrita aos Coríntios, em que louva todos os sofrimentos por que passou, compreendendo que isso o aproximava de seu Mestre e assim por essa razão, o que exprime a verdadeira ação que o sofrimento causa ao ser humano, de que aceitando sua condição de miséria, mas não de miserável, se fortalece na luta e passa assim, a não mais ter medo de consequências, de perdas ou derrotas. 

 Por medo de reincidir na arrogância de um tempo pretérito, enquanto gozava da cidadania romana e da condição de judeu zeloso pelos costumes e tradições que seguia, São Paulo de Tarso, ainda na introdução de seu relato no capítulo 2 da carta endereçada aos cristãos de Corinto, menciona que para não se exaltar em face das revelações divinas pelas quais foi agraciado, foi lhe dado "um espinho na carne", que entende como "mensageiro de Satanás" para 'esbofeteá-lo', a fim de que em sua nova condição de convertido religioso cristão, não repetisse os vícios egocentristas de antes.

 Seria o inferno permitido na vida dos 'errantes', realmente um meio de purgação para a busca de um fortalecimento pessoal? 

 O sofrimento imposto por percalços naturais da "vida" (sistema social), é razoável na medida do que se entende como humanamente suportável, mas no caso sírio e de demais povos que são vítimas de realidades conflitantes humanitárias históricas, a explicação só pode ser entendida como um mecanismo macabro onde os dominadores, pouco se importam com suas próprias 'salvações espirituais' ou com aquilo que é visto como necessidade de aprimoramento espiritualista em função disso.

 Uma necessidade que não é vista como essencialmente útil para um europeu que vive as benesses do estado de bem estar escandinavo, aonde 80% da população é declaradamente ateia. 

 Esse contraste portanto, de populações inteiras que sofrem fome, condições precárias de moradia, falta de saneamento básico ou mesmo estando na condição de vítimas de guerras, às quais manifestam maior tino religioso, é o que tem feito aumentar bastante o nível de ateus pelo mundo. Sem dúvida a grande distorção que se fez do uso da religião que antes era perseguida pelo poder dominante pagão e que hoje é usada para sofismar o sentido do sofrimento que em sua justa medida, seja capaz de fortalecer a personalidade humana frente suas adversidades pessoais vividas.

 Há contudo, uma classe arrogante de ateus que apenas tripudiam daqueles aos quais são enganados por seus líderes religiosos, na mensagem sofismada truncada dos textos sagrados recebida por eles. Estes ateus no mínimo não conseguiram extrair um entendimento da força que se pode conquistar por meio do sofrimento e que lhes dessem por meio dele, a sensibilidade necessária em se saber lhe dar com as pessoas enganadas pela religião, quando a mesma é usada como braço dominante da concepção capitalista da precarização do trabalho, como um modo de se extirpar o suposto comodismo dos pobres.

 O mundo terá de repensar seus conceitos de justiça e o verdadeiro contexto da "punição" (aos culpados pobres), ou a imposição de sofrimento a outros, como justificativa de uma suposta necessidade de fortalecimento pessoal ou espiritual das massas historicamente oprimidas, determinada pela elite mundial, à qual nem sequer suporta a ideia de viver sob tais condições para nessa busca interior pelo aperfeiçoamento pessoal, se façam pessoas melhores e mais sensíveis ao sofrimento humano, em vez de impor ainda mais sofrimento a aqueles considerados a parte "mais fraca".

 Nesse contexto, vale ainda voltarmos a reflexão de Eduardo Marinho em relação ao tratamento dado aos pobres: "Os pobres, eles constroem; eles botam pra funcionar; eles mantêm, eles reparam; eles sustentam o estado. E no entanto são enganados, são inferiorizados, são sabotados; têm seus direitos humanos negados; seus direitos fundamentais. São colocados em uso, como se fossem animais; é ali que precisa tomar consciência, porque é ali que tá a força da sociedade; só que tá inconsciente. Pra isso se nega a instrução, se nega a educação..., como num sistema escravagista: os caras não podem saber ler, não podem ter instrução porque senão, ele se esclarece, ele se revolta..."

 Por isso dentro da maiêutica socrática, é preciso despertar nas pessoas e em todos os povos que sofrem, a verdadeira dimensão do tipo de sofrimento que serve como processo evolutivo pessoal humano, do sofrimento imposto como condição de exploração do homem pelo homem, em que se envolvem sobretudo, interesses econômicos sob a fachada da "luz civilizatória da democracia" sobre regimes considerados tirânicos, como o governo Assad na Síria.

 Nesse entendimento em que se trabalha fraquezas de espiritualidade que ofuscam o verdadeiro entendimento do que é proveitoso dentro do processo de fortalecimento pessoal humano por meio do sofrimento, e o que é de fato, simples exploração e dominação de massas, serão precisos cinco gerações ou mais, de um convencimento conjunto de massas em um caráter supranacional, cultural, social e religioso, de que o sofrimento do povo sírio, permanece no cotidiano de cada um de nós, e que de uma forma ou de outra, foge das guerras travadas por aqueles entendidos como "mais fortes". 

 Com isso vale lembrar também a reflexão de Jean-Paul Sartre em que diz: "Quando os ricos fazem a guerra, são sempre os pobres que morrem."       

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