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Em tempos líquidos, fuja da frase "sair da zona de conforto"

 O senso comum elegeu o brasileiro como acomodado e pouco disposto ao trabalho duro, no entanto, são poucos aqueles que podem se dar ao luxo de ostentar o ônus da meritocracia com orgulho, como fruto de seus trabalhos pesados. A realidade empírica que acaba predominando é que ninguém conseguiu nada no Brasil tão somente e unicamente por meio do trabalho.

 "Sair da zona de conforto" portanto, reflete a coação moral na qual as pessoas são incumbidas de uma terceirização involuntária da responsabilidade das primeiras. Tudo porque quem profere tal frase, o faz por se encontrar em sua zona de conforto própria (e desejar com isso, se preservar nela), enquanto seus subalternos realizam aquilo que em suas condições de superiores, jamais fizeram e nem têm a pretensão de saberem como se faz.

  Zygmunt Bauman,  que morreu em
janeiro de 2017, classificou a socie-
dade   em    "modernidade   líquida" 
(foto: jornal El País
).
 Nos tempos em que era comum escravizar negros no Brasil, os brancos que nada faziam (a não ser mandar), os chamavam de "preguiçosos"; hoje é comum pessoas ricas e da alta classe média, atribuir a pobreza de negros, pardos e mestiços à sua pouca disposição ao trabalho. 

 Mas a vida fútil moderna da classe média também fez suas vítimas; por meio de jogos suicidas como o "baleia azul", jovens adolescentes submersos em suas vidas monótonas e desinteressantes, se mutilavam até a morte, como forma de provarem suas utilidades ao mundo.

 A retórica da zona de conforto, pode acabar sendo com isso, a razão de diversão sádica e de sensações confortáveis justamente para aqueles que pregam a falsa necessidade da renúncia à pseudo vida fácil com a adesão maciça ao trabalho duro. É um meio usado para coagir indivíduos a fazer o que endinheirados e burgueses folgados nunca se dispuseram a tal. 

 Em todo esse cenário, a publicação virtual do respeitado jornal espanhol El País, trouxe um texto interessante, contendo a observação do professor da Universidade Carlos III de Madri, Óscar Pérez Zapata, em que diz que se pretende criar uma cultura corporativa forte em que os elementos emocionais e íntimos sejam cada vez mais importantes na busca pelo comprometimento individual nos resultados.

 Ainda de acordo com Pérez Zapata, que explanou sua opinião no El País, essa mentalidade se encaixa com o objetivo pretendido, na constante busca da motivação onde o pensamento positivo elimina qualquer possibilidade de crítica, transferindo a dúvida e a culpa (próprias da estrutura corporativa), para o indivíduo que nela atua. É aí que entram as palestras motivacionais e os coachings (da vida).

 Nesse quadro o que fica implícito é o chamado darwinismo social, onde fazendo alusão à teoria de Charles Darwin sobre a evolução das espécies - em que somente os mais fortes sobrevivem -, o fantasma da tal "zona de conforto" acaba se tornando uma prisão psicológica em que o indivíduo é cada vez mais instado a ser um super humano, resiliente e resistente a todas as investidas contrárias que sofrer. 

 Com isso as frustrações aumentam e a sensação de inutilidade das crises psicológicas se avolumam; o fracasso portanto, se perpetua enquanto o sentimento de depressão persistir. Algo que se não for tratado com o devido cuidado pode levar a sequelas permanentes ou até suicídios.

 Todas essas complicações provocadas por crises de auto estima são produtos do mundo pós-moderno em que proliferaram a ausência de proteção, a mobilidade e a flexibilidade nas relações de trabalho, onde os empregos são cada vez mais instáveis e por isso de curta duração. Através desses processos as responsabilidades individuais vão se avolumando, ao passo que as estruturas corporativas pouco são avaliadas em torno dessas leituras.

 E é nesse ínterim que corrobora o terreno fértil para as teses e teorias do pensador, sociólogo, filósofo e escritor polonês, Zygmunt Bauman; em boa parcela de seus 50 títulos literários, ele expôs o que chamou de "sociedade (ou modernidade) líquida", dada a instabilidade das relações humanas em todas as vertentes, principalmente no que se refere ao capitalismo.

 "Vivemos tempos líquidos. Nada foi feito para durar", disse o sociólogo polonês, que faleceu em janeiro de 2017 aos 91 anos. Por frases assim, que Bauman se tornou um dos pensadores mais célebres e importantes do final do século 20. 

 Crítico ferrenho do capitalismo moderno, Bauman foi o que melhor sintetizou o neoliberalismo em sua face mais cruel: a definição do ser produtivo mesclada ao seu nível de consumo. São essas visões compartilhadas por Bauman que acabam influenciando no mundo corporativo, como observado pelo professor Pérez Zapata, ouvido pelo El País; 

 É justamente a ausência dessas análises ou o completo desconhecimento delas, que terminam em falsas necessidades recorrentes da modernidade líquida e efêmera, de se arriscar mais, de enfrentar a vida de peito aberto (mesmo sem preparo algum); enfim o convite letal para se sair da "zona de conforto", pode ser aquele ao qual faz o indivíduo renunciar ao tipo de proteção fundamental à sua sobrevivência na sociedade. 

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